sábado, 15 de fevereiro de 2014

E a copa do mundo da reforma agrária? Esta já está perdida?

Por Jacques Távora Alfonsin*

A Bíblia conta a história de um numeroso povo pobre, vivendo sob cruel e duradoura escravidão, que foi libertado por intervenção amorosa de Deus. Ouvindo o seu clamor, identificado com o seu sofrimento, Deus prometeu-lhe a liberdade numa terra grande e boa.  
Esse povo iniciou então uma longa caminhada, enfrentando todo aquele tipo de problemas que, como a gente sabe, desafiam qualquer mudança e libertação. Foi perseguido, teve medo, hesitou, desanimou, sofreu violentas divisões internas, duvidou da promessa de Deus, se esqueceu de como tinha vencido, com Ele, o poder que o oprimia, adorou ídolos, envolveu-se em guerras contra outros povos e vizinhos hostis. 
Mal ou bem, todavia, não desistiu da sua caminhada. Profetas e lideranças que o acompanhavam, sempre o relembrava da causa que o colocava em movimento: Valia a pena. A terra prometida haveria de acolhê-lo, como um seio generoso, para quem não perdesse a fé e a esperança, nem o amor agradecido a um Deus que lhe queria muito bem e o libertara. Bem como as Romarias da Terra ainda refletem hoje, de alguma forma. Essa caminhada difícil, dura, libertária. Parece incrível que, vencidos tantos séculos, um numeroso grupo de gente se ponha a caminhar, movida por fé e esperança renovadas, pelas mesmas razões de tantos séculos atrás.
Pouco valorizada pela sociedade, ridicularizada pelas/os ricas/os, sujeita ao deboche até de parte da mídia, ela se reúne todos os anos, consciente de que existe muita escravidão ainda agora. A escravidão da miséria, que oprime multidões no Brasil, se deve, em grande parte, à escravidão da nossa própria terra. Está presa pelo direito de propriedade ilimitado, tomado pelo latifúndio indiferente à sua função social; está presa pela cobiça de transnacionais indiferentes à depredação do meio-ambiente; está presa pelo imediatismo de conveniências periódicas do chamado agronegócio exportador que não se importa se o destino dos seus frutos e produtos, em vez de alimentar o nosso povo, obtenha lucro lá fora, como uma mercadoria qualquer; está presa pela exploração do trabalho escravo; suas florestas, seus rios, seu ar, sua fauna toda e seu clima prosseguem vítimas de uma depredação indiferente à vida. 
Esses verdadeiros crimes praticados contra as/os brasileiras/os e sua terra são explicados e “justificados” em nome da liberdade dos mercados, como a única condição de progresso. Entretanto, todo esse uso nocivo da nossa mãe terra está previsto em lei, direta ou indiretamente, como proibido. Desde 1964, pelo menos, com o Estatuto da Terra e desde 1988, com a Constituição Federal, muitos instrumentos legais foram criados para impedir esse uso preventivamente ou puni-lo em caso de sua verificação.
A reforma agrária é uma política pública imposta à União que engloba tais instrumentos. As/os pobres libertados do Egito levaram quarenta anos para chegar à terra prometida. As/os brasileiras/os já estão esperando bem mais tempo. Se um tal modo de tratar a terra continua sendo reproduzido, assim mesmo, das duas uma: ou todas essas leis estão sendo mal interpretadas e aplicadas ou servem apenas como despiste para que o mau uso prossiga. Nesse caso, a verdade é feito presa da injustiça, como diz São Paulo na epístola aos romanos (1, 18), coisa comprovada por um tipo de interpretação que, de forma solerte, sublinha apenas aquelas regras que devem ser obedecidas para conservação do que já é, escondendo as que devem ser obedecidas para a implantação do que ainda não é, mas necessita ser, como a realização da reforma agrária, por exemplo.   
Por uma ou por outra daquelas hipóteses, então, não é que as vítimas dessa situação toda, como as/os índias/os, as/os trabalhadoras/es pobres sem-terra e sem teto, as/os quilombolas, as/os pequenas/os proprietárias/os de terra, as/os assalariadas/os do campo, as/os atingidas/os pelas construções de barragens, possam desobedecer a lei.   Elas/es tem o direito de desobedecê-la (!), pois  se trata de uma lei que, pelo menos da forma como vem sendo interpretada e aplicada,  trai a sua própria finalidade que outra não é a de garantir a vida, a dignidade humana, o bem-estar, a cidadania das mesmas pessoas a quem ela deve o seu próprio poder.  
Quando isso acontece - e está acontecendo atualmente - vale outro conselho de São Paulo: “...agora estamos livres da lei porque já morremos para aquilo que nos mantinha prisioneiros. Por isso somos livres para servir a Deus não da maneira antiga obedecendo à lei escrita, mas da maneira nova, obedecendo ao Espírito de Deus” (Rom. 7,6) 
Aí se comprova quão urgentemente tem-se de se reconhecer, de forma bem clara, a existência de um conflito histórico e permanente entre uma lei que mata como a que matou Sepé Tiaraju, cuja memória as romarias da terra sempre testemunham, Elton Brum da Silva (assassinado em 2009, no cumprimento de uma ordem judicial executada também aqui no nosso Estado) e tantos outros mártires da nossa caminhada em busca da terra prometida. Existe aquela que preserva intacta a injustiça social, a pretexto de que a lei escrita deve ser cumprida, e existe aquela em plenitude da qual, o amor do próximo supre de modo tão competente qualquer formalismo, que é capaz de inspirar uma economia solidária, garante de uma suficiência de bens para todas/os em vez de “sempre o mais é o melhor” para alguns, mesmo a custa do prejuízo alheio, como impõe o sistema econômico capitalista. O curioso é que, pelo menos na letra da primeira lei, a simples indicação da palavra “reforma” pretende indicar que a “forma” capitalista de exploração da terra aqui no Brasil, tem de ser corrigida...
É mais do que hora, portanto, de o povo pobre e trabalhador do nosso país ser reconhecido como sujeito do direito à terra e não mero objeto de autoridade. A “terra de trabalho”, como a CNBB apregoava ainda em 1977, é incompatível com a “terra de exploração”, como quer a CNA, a bancada ruralista no Congresso e os poderosos grupos econômicos nacionais e internacionais que essas últimas defendem. 
A reforma agrária está carente, então, de uma romaria que se inspire naquela que estamos celebrando hoje e, para não morrer de vez, tome o partido da terra de trabalho contra a terra de exploração. Embarque numa copa do mundo diferente. Destrave o Poder o Judiciário enrolado em processos (inclusive os de desapropriação) que prorrogam indefinidamente os seus fins; destrave o Poder Executivo que dê aos seus órgãos e autarquias (como o INCRA por exemplo) os meios eficazes das garantias devidas às prioridades impostas pelos direitos humanos fundamentais do povo pobre do campo; destrave o Poder Legislativo, libertando-o  do domínio econômico latifundiário, abrindo-o à democracia efetivamente participativa do povo vítima das leis de fachada, do “devido processo legal”, quando esse funciona apenas para travar o devido processo social, e da corrupção, também aquela que esconde os corruptores. Trata-se de outro jogo, portanto, muito mais sério e urgente do que o de futebol. Nele, nenhuma derrota pode ser, sequer, cogitada, para tanto exigindo-se um esforço até superior àquele que os Poderes Públicos do país estão empreendendo para realizar a Copa do Mundo aqui no Brasil. 
A nossa romaria da terra, assim, tem plena consciência de que não é somente a execução de uma lei de reforma agrária que vai colocar essa política pública em romaria capaz de alcançar a terra prometida. Por isso ela não abre mão de testemunhar que o seu simples movimento, repetido a cada ano, prova que o povo com direito de acesso à terra é o principal sujeito de direito, também, dessa possibilidade, desconsiderando como injusta e ilegítima qualquer lei, ordem, regra, ou determinação que impugne sua participação efetiva nessa reforma, em defesa da sua inadiável libertação. 

*Jacques Távora Alfonsin, é integrante da Comissão Estadual da Verdade. É advogado do MST e procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul. É mestre em Direito, pela Unisinos, onde também foi professor. É membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e publica periodicamente seus artigos nas Notícias do Dia da página do IHU.

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